quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

KLEBER SAN GALO LEMBRANDO O AMIGO JULIO NETO


A PERDA DE UM AMIGO
Não deve ter algo que nos traga para a crua realidade da vida do que a perda de um amigo da mesma idade. Seja de morte violenta ou de morte morrida, por doença. Quando se faz dessa segunda forma fica patente a nossa finitude, e aí é que o bicho pega.

Quando somos muito jovens não temos a compreensão de que somos programados para morrer um dia. Na nossa visão podemos morrer amanhã sim, mas sempre de morte violenta ou heróica – romantismo próprio da idade que ainda teimo em não perder-. Nunca por doença e ainda mais de doença de “velho”. Por quê? Porque ainda não perdemos nenhum amigo dessa forma, e quando isso acontece só sabemos de meias-verdades sobre essa morte. Essa tal de morte.

Quando chegamos à plenitude de nosso desenvolvimento físico também subjugamos a morte aos confins da nossa mente e ela só vem à tona por motivos passionais ou dificuldades nas nossas conquistas. São os hormônios e a perpetuação da espécie subjugando a nossa única certeza ao nascer.

Perdi um grande amigo nesse final de semana. O perdi para uma doença traiçoeira e dissimulada- coisa que esse amigo nunca foi-, o câncer. Ele não era um desses amigos de última hora. Era um daqueles ímpares que você pode ficar anos sem ver, mas quando encontra é do mesmo jeito que de quando o via todo o dia. Daqueles que você escolhe para a família, chamando a mãe de tia e os filhos dele de sobrinhos.

Amigos dessa estirpe você não procura as notícias: elas chegam até você por todos os que conviveram com vocês nos “bons tempos”. Todos estes sabem dos seus laços e sentimentos mútuos. As conquistas, vitórias, derrotas e dissabores chegam por diversas vias e você sempre as julga conforme a sua memória do amigo de sempre. Quando sua tese é sempre confirmada sobre essas notícias você tem a certeza que seu amigo está ali. São princípios e posicionamentos que, entre verdadeiros amigos, são consolidados por atos que construíram ambas as personalidades: sua e dele.

Ainda lembro-me da primeira vez que o vi: Gordo, com grande agasalho de nylon vermelho, de capacete, que quando retirava mostrava o cabelo crespo grande tipo Black Power, pilotando sua 125 vermelha pelo “trecho”, como chamávamos o beco da cadeia onde eu e nossa turma morávamos. Característica presente e inicial que nos aproximou? Seu pensamento rápido e seu humor sarcástico. Não estudávamos na mesma escola e nos encontrávamos no trecho e nos clubes da cidade.

Um ano depois estávamos todos que éramos da mesma idade e que frequentávamos o trecho estudando no mesmo colégio. Anos de descobertas, motos, carro, bebidas, puteiros, esporte, amigas que namorávamos e de separação do joio e trigo: amigos têm princípios sejam no esporte, conquistas, posses pessoais ou mesmo com as putas. Aí firmamos nosso team, nossa entourage, aqueles que podemos contar. Para o resto da vida.

Quando o bicho pegou e as responsabilidades começaram a aparecer, ele foi também o meu parceiro: dias e noites de estudo no quarto dos fundos de minha casa que resultaram em vestibulares vitoriosos – o dele um ano antes do meu-. Se o mundo ainda não era nosso pelo menos Salvador era. Fomos os dois estudar na federal, ele em economia e eu em medicina. Eu morando com minha tia e ele em uma república inesquecível com os amigos do trecho. Farras memoráveis, orgias, política estudantil ativa- éramos os dois românticos combatentes da ditadura-. Nossos relacionamentos aumentavam, mas os amigos diminuíam: os princípios eram perdidos e esses “amigos” também. Quantas noites com turmas “da pesada” que nós os caretas da época participávamos mesmo sem consumir droga nenhuma além da cachaça que embalava nossos sonhos e embelezavam as fáceis, mas não tão belas que compartilhávamos. “Quando a turma reunia a gente sempre dizia...”, só não cometerei a heresia de citar nomes porque somos cavalheiros.

Depois vidas diversas e destinos diversos: eu em Salvador, ele em Feira, eu na Medicina e ele na administração. Caí à ditadura. Ele tucaneia, eu me afasto da política. Eu médico, ele Secretário da Fazenda. Os dois em Feira. Ideologia próxima, mas posições nem sempre. Discussões homéricas, mas nem sempre conclusivas. Eu casamento longo, ele casamento desfeito. Eu filhos tarde, ele filho cedo. Os princípios presentes. Sempre. Ética e respeito.

Volto a viver na capital. Ele em construções e projetos com prefeituras pelo interior. Encontro cada vez menos freqüente. De ano em ano, talvez mais. Ele liga quando opero o estômago. Eu ligo quando ele cai doente do fígado. Encontramos-nos no shopping. Conversa, chopinho eu coca diet ele – culpa do fígado-. Trocamos telefone. Juramos nos ver mais. Nos ver? Nunca mais.

De luto. Eu estou de Luto. Como devem estar Júlio Cruz, Eduardo Brandão, Ari Pina, Oscarzinho, Coca, Valdeck, Santinho, Thomas, Alberto, Eduardo Hulk, Cesar da eletrônica, Everaldo, Edson Kupi. A galera do trecho e da república. Nossa perda é grande. Nossa finitude próxima. Uma certeza além dessa? Que os princípios são eternos.Saudades amigo Júlio “Gordo” Neto
KLEBER SAN GALO

Um comentário:

  1. Muito bem escrito, palavras bem colocadas,parece ter escrito não com as mãos e sim com o coração. Parabéns Kleber

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